As relações entre ciência e valores morais nunca forsm pacíficas, embora também nunca totalmente divorciadas, tendo, ao longo da história, marcado o desenvolvimento científico.
Aristóteles, talvez o maior dos filósofos, intuía o problema. Apesar de ter trazido a ciência de então para o contexto da observação, retirando-a da exclusividade da metodologia racional-especulativa, o que representou um poderoso avanço no estudo científico dos fenômenos naturais, o estagirita parou aí na observação, jamais tendo avançado na matematização da observação.
Não está claro porque não o fez, certamente não foi por falta de conhecimentos matemáticos. Malgrado as deficiências dos instrumentos de medição, mais provável é que o grande filósofo não confiava deixar os resultados da pesquisa serem decididos pelas relações matemáticas entre os fenômenos. Achava a avaliação dos dados da observação uma tarefa para a razão (metodologia da causalidade múltipla: causa material, causa eficiente, causa formal e causa final). Somente com esse sofisticado instrumento racional julgava poder avaliar todas as dimensões e conseqüências dos achados científicos.
Essa prudência não teve Galileu ao estatuir a ciência moderna (séc XVI). Na esteira renascentista, o grande matemático italiano propôs que a ciência para alcançar resultados verdadeiros deveria evitar o programa lógico-observacional de Aristóteles e se ater simplesmente à grandeza mensurável dos fenômenos. Galileu retoma a tradição pitagórica do número: “a linguagem do universo é a matemática”. Assim fazendo, o pai da ciência moderna põe de lado toda a reflexão racional sobre motivos morais (o que sempre era suscitado na metodologia aristotélica das causas finais). Alcança-se assim a separação entre o saber científico e o saber moral.
Deixar, a ciência, livre dos “constrangimentos morais” funcionou como uma poderosa alavanca que acelerou, como nunca antes, a busca de explicação dos fenômenos naturais por seus antecedentes naturais. O homem de ciência embarcou nessa aventura com tamanha vontade e dedicação que, em pouco tempo (se considerados os séculos de predomínio da ciência grega e do pensamento escolástico), a ciência se tornou a forma mais difundida, mais presente, mais precisa e, por isso, mais valorizada de conhecimento humano, deixando as reflexões de ordem moral para o pensamento filosófico-teológico e restringindo a teologia a uma espécie de gueto epistemológico do misticismo, distante dos problemas práticos da vida comum.
A fascinante aventura da ciência moderna se avolumou e pujante chegou aos dias atuais consagrada como o saber certo e confiável que domina a nossa vida, em todos os campos.
Todo esse sucesso parece ter levado o homem moderno a acreditar que pudesse suprir com a ciência toda a necessidade de conhecer. Toda dúvida, todo problema deverão, com o tempo, ter uma resposta da ciência: completa e definitiva (afinal, não era esse o programa positivista de Conte?)!
Isso nos trás para o tema central desta reflexão. Pode mesmo o conhecimento científico ser um empreendimento “amoral”?. Se esse ideal cientificista for levado a cabo, isso não tornará o mundo mais imoral?
Para tentar responder, ainda que de forma provisória, a essa questão, trato das idéias de Charles Darwin, que ora está a movimentar toda a comunidade científica e a mídia pela comemoração de seu bicentenário.
Como se sabe, Darwin, homem de ciência por excelência, propôs que as espécies animais não são criaturas estáticas desde sempre, mas variavam ao longo da filogênese, evoluindo de acordo com as características predominantes nos indivíduos mais aptos das espécies. Assim, os indivíduos que portam um diferencial evolutivo têm seus genes preservados nas gerações futuras, acabando por marcar a evolução de toda uma espécie. Um exemplo pode ajudar a aclarar o postulado teórico darwiniano. Seja a seguinte situação: em uma determinada região de florestas, há uma espécie de animal (um quadrúpede terrestre) que se alimenta dos frutos de uma árvore de pequeno porte. Dessa forma, o nosso animal fictício não precisa fazer grande esforço para obter seu alimento. Contudo, em determinado momento, por um acidente físico (uma seca muito prolongada) ou biológico (pragas sucessivas) a nossa pequena árvore é extinta na região. Resta ao nosso animal fictício fazer um grande esforço, esticando o pescoço, para apanhar o alimento em árvores mais altas, que foram as que restaram na região. Entre os indivíduos da nossa espécie fictícia, havia uma variação no tamanho do pescoço, e obviamente aqueles de pescoço mais longo levavam vantagem na hora de coletar o alimento. Além dessa facilidade, que permitia a economia de energia aos animais de pescoço longo, os animais de pescoço curto começaram a perecer em função de inflamações na cervical (excessiva extensão). Com o tempo, após várias e várias gerações, já não nasciam mais animais de pescoço curto. A seleção natural houvera sido feita em favor dos animais de pescoço longo!
Aplicando o mesmo postulado à espécie humana, pode-se entender que os indivíduos com diferencial evolutivo teriam seus genes preservados pelas gerações futuras, enquanto aqueles desfalcados desse diferencial pereceriam e não lograriam legar seus genes às gerações futuras. Que conseqüências teria essa aplicação darwiniana para a espécie humana?
Sobre isso, deixo o próprio Darwin falar:
“Entre os selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os sobreviventes geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, civilizados, por nosso lado, fazemos o melhor que podemos para deter o processo de eliminação: construímos asilos para os imbecis, os aleijados e os doentes; instituímos leis para proteger os pobres; e nossos médicos empenham o máximo da sua habilidade para salvar a vida de cada um até o último momento... Assim os membros fracos da sociedade civilizada propagam a sua espécie. Ninguém que tenha observado a criação de animais domésticos porá em dúvida que isso deve ser altamente prejudicial à raça humana. É surpreendente ver o quão rapidamente a falta de cuidados, ou os cuidados erroneamente conduzidos, levam à degenerescência de uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio ser humano, ninguém jamais foi ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzissem.”
Peço que releiam a citação. Darwin afirma, sem meios termos, que é um erro (um contra-senso científico “altamente prejudicial à raça humana”) que o homem civilizado proteja os indivíduos “imbecis, aleijados e doentes”. Aponta a solução praticada pelos povos primitivos como muito mais acertada que a do homem civilizado: eliminação dos fracos “de corpo e de mente” e proliferação dos saudáveis e vigorosos.
Obviamente, a proposta darwiniana é eugenia explícita (fortalecimento da raça pela eliminação dos deficientes e “contaminados” por outras raças).
Ora, o que vemos no mundo ocidental (judaico-cristão) é o contrário da proposta científica de darwin. Cada vez mais as pessoas portadoras de toda a sorte de deficiências vêm recebendo apoio, tratamento e formação que as têm tornado, de fato, capazes de contribuir para a sociedade, além de desenvolver uma vida pessoal plena. Cegos, surdo, deficientes mentais, tetraplégicos, portadores de síndromes neurológicas várias, bem apoiados desde a infância se mostram plenamente capazes, na maioria das vezes, de ajudar sua comunidade e não precisam ser vistos como um peso para suas famílias. Há casos de portadores de síndrome de Down que já conseguem concluir o curso superior (desenvolvimento impensável há um século).
Pode-se, agora, indagar: se a posição cientificista-darwiniana prega a eliminação dos deficientes como fator de progresso da civilização, qual é a força que, não sendo a ciência, propõe o justo contrário: apoiar o desenvolvimento dos deficientes até o limite de seu potencial?
Pois bem, essa força que não está presente na ciência moderna, é a moral cristã. O cristianismo (res)estabelece a aliança do homem com Deus, tornando cada pessoa humana merecedora da vida que o Criador lhe destinou. A vida é dom de Deus e deve, pois, ser valorizada não importa qual seja sua limitação. Doença, deficiência, limitações físicas ou mentais, não importam: tudo deve ser feito para preservá-la do princípio ao fim. Se é possível entender o desejo do Pai, certamente Ele não quer que o progresso da civilização se dê pela eliminação dos fracos, mas pelo apoio para que cada um (deficiente ou não) possa superar suas limitações e alcançar a felicidade.
Estas considerações de ordem moral constariam das reflexões científicas que contemplassem as “causas finais”. Deixados os “fatos científicos” aos sabor de suas singelas explicações naturais, não teríamos hoje o pleno desenvolvimento e inclusão das pessoas deficientes, mas a marcha imoral da eliminação dos mais fracos!
Resta uma reflexão: onde mais isso pode estar ocorrendo?
Edson Moreira
Nenhum comentário:
Postar um comentário