Os emissários das trevas entregaram mais uma encomenda. O terrorismo é, dos crimes, o mais abjeto, o mais torpe e contra ele não se pode ter meios termos. É pavoroso pensar que existem "intelectuais" e "jornalistas" que possam sequer ver no terrorismo uma sombra de legitimidade.Em Boston, as pessoas, gente comum, saíram para correr ou passear em uma tarde de feriado. Muitas voltarão para suas casas sem um braço ou uma perna. Algumas não voltarão mais para suas casas, não voltarão mais para seus pais, seus filhos, companheiro, companheira, amigos, vizinhos. Foram bloqueadas da vida entre uma passada e outra, entre um olhar e outro, entre um sorriso e outro! É para essa reflexão que publico abaixo o magnífico texto do Reinaldo Azevedo.
O terrorismo transforma o humano em coisa para que possa matá-lo sem remorso. Ou: Considerações sobre uma foto.
As tragédias sempre têm uma foto, uma imagem, que viram uma espécie de emblema. Para mim, a do atentado ocorrido em Boston, nesta segunda, é esta, de John Tlumacki (The Boston Globe/Getty Images).
Roland
Barthes escreveu um ensaio sobre fotografia no qual afirma que as imagens têm o
que ele chamava “puncta” (plural da palavra latina “punctum”). São os “pontos”,
não necessariamente centrais, que atraem o nosso olhar. Um dado muitas vezes
periférico da imagem acaba dizendo mais sobre o evento retratado do que as
evidências escancaradas.
Voltemos
à foto. Chama a atenção, de imediato, a composição da cena em vermelho e negro.
Parte desse vermelho é o sangue das vítimas, também da mulher retratada. Nota-se
que um naco foi arrancado de sua perna, logo abaixo do joelho. As partes
visíveis de seu corpo estão lanhadas; a blusa, rasgada. Os artefatos explosivos
certamente continham pregos — ou algo semelhante — para ferir também os que
estivessem a uma distância razoável da explosão. No canto superior esquerdo, há
uma pessoa deitada.
Tudo
isso é constatável à primeira vista. Mas a síntese da tragédia não está nessa
composição horrível. Há coisas ainda mais terríveis — que são, estas sim, a
síntese da miséria moral terrorista.
Seus
olhos miram o nada. Seus olhos estão voltados para a incompreensão. Seus olhos
são a expressão da catatonia. Ela se confronta com a ausência de sentido. Eu me
arriscaria a dizer que, no momento desse flagrante, essa pobre mulher não sentia
dor, tristeza, preocupação, ódio, melancolia… Sua alma a abandonara por um
instante.
Em
estado de choque, podemos ficar literalmente anestesiados — a dor física só
chega depois, quando recobramos algum domínio sobre o nosso corpo. O sofrimento
moral, por sua vez, requer uma articulação com a linguagem e com a consciência
de quem nós somos. Só temos a chance de nos consolar se encontramos o
repertório com que expressar a nossa dor. Sem isso, sofremos, sim, mas quase
como bichos.
A
vida, no entanto, insiste. E aí o meu olhar se desloca para a sua mão direita
(a esquerda, presume-se, fala a mesma linguagem). Elas estão pregadas no chão.
Ela não quer deitar. Como o animal acuado, mantém-se ereta, dentro do possível,
porque, mesmo sem entender o que se passa, mesmo sem saber por que coisa foi
colhida, não quer morrer. Vai até o limite de sua força.
No
pé deste post, publico outras imagens da tragédia. Há, até agora, apenas
especulações a respeito. Ninguém reivindicou a autoria do atentado. Ninguém
sabe se há motivação política. Isso importa? Importa, sim, para o futuro e para
o tratamento policial que se dará em questão. No que diz respeito à essência do
ato, não faz diferença se os autores falam em nome de uma causa ou apenas se
consideram injustiçados pelo mundo e querem se vingar.
Todos
os crimes são, afinal de contas, crimes, mas é claro que se pode fazer uma
hierarquia na escala da abjeção. O terrorismo é o mais asqueroso deles, pouco
importam a sua natureza, a sua causa ou as suas justificativas. Não obstante,
nestes dias, há intelectuais que flertam abertamente com suas possíveis
virtudes; que veem em atos dessa natureza uma expressão, ainda que um tanto
distorcida, do humanismo. É o caso do intelectual marxista esloveno Slavoj
Zizek, que sai fazendo a sua cantilena maldita mundo afora, encontrando eco,
inclusive, em universidades dos EUA, que já passaram pelo 11 de Setembro.
No
Brasil, Zizek e sua tese ganharam uma resenha elogiosa assinada pelo professor
da USP Vladimir Safatle. O texto foi
publicado no Estadão — sim, no Estadão! — no dia 11 de janeiro de 2009. E eu
jamais deixarei que vocês se esqueçam disso, que o Estadão se esqueça disso e
que o próprio Safatle se esqueça disso. A cada vez que eu vir uma foto como a
daquela mulher e as que se seguem abaixo, farei com que vocês se lembrem disso,
com que o Estadão se lembre disso e com que Safatle se lembre disso. É bom
notar: terroristas costumam armar suas bombas em aparelhos clandestinos,
fétidos, escondidos de toda gente. Intelectuais que justificam seus crimes
costumam estar nas universidades, nas bibliotecas e escrevendo em jornais.
O
terrorismo desumaniza o outro para que possa matá-lo sem remorso — mais ou
menos como o professor Satafle, em certo artigo, desumanizou o feto,
chamando-se de “parasita”, para tentar convencer o seu leitor que legalizar o
aborto é uma postura correta e moralmente aceitável.
As
vítimas do terror, como evidencia aquela foto, são transformadas em “coisas”.
Por alguns instantes, não sentem nada, nem dor nem paixões. Grudam, como
animais acuados, os membros no chão, num último esforço para que a vida não as
abandone.
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