domingo, 22 de março de 2009

“BURGUESINHA”: UM TANTO DE DOENÇA MENTAL A PRETEXTO DE CRÍTICA SOCIAL

Até que ponto uma produção da cultura popular, aparentemente inspirada e inteligente, pode ser veículo de expressão de uma doença mental? Se a pergunta for cabível, quais são os mecanismos psicológicos pelos quais a doença mental se transmuta, sorrateiramente, em produção “poética” de crítica social.

Para tentar iniciar um primeiro entendimento da questão, tomo como objeto a composição intitulada “Burguesinha” de autoria e cantada pelo autointitulado “Seu Jorge”. Recorro, parcialmente, à tradição psicanalítica na análise.
O autor, saudado como grande intelectual popular pelos comunicadores “sensíveis às questões sociais”, busca satirizar a vida banal de uma jovem “burguesinha”:

“Vai no cabeleireiro
No esteticista
Malha o dia inteiro
Pinta de artista

Saca dinheiro
Vai de motorista
Com seu carro esporte
Vai zoar na pista

Final de semana
Na casa de praia
Só gastando grana
Na maior gandaia

Vai pra balada
Dança bate estaca
Com a sua tribo
Até de madrugada”

A garota, como se vê, é apresentada como possuidora de uma existência absolutamente fútil, sem sentido e desprezível. Tudo o que faz é ironizado: cabeleireiro, esteticista, malhação, dinheiro, motorista, carro esporte ... Chega a ser irritante o quanto essa criatura é desprezível.

Contudo, o sensível poeta, ao que parece, não percebeu que o que a personagem rotulada faz é exatamente o mesmo que todas as jovens gostariam de fazer... se pudessem. Senão, vejamos. Qual garota saudável não gosta de ficar bonita (cabeleireiro, esteticista, academia...)? Qual garota normal não gosta de conforto (carro, casa de praia, dinheiro pra gastar...)?Qual a garota feliz que não gosta de diversão (baladas, amizades, passeios). Neste último aspecto, o que difere as jovens não é sua condição financeira, mas sua vinculação aos valores conservadores. Portanto, não é verdade que a rica, burguesinha na rotulação do autor, prefira gandaia e a pobre prefira as festas da igreja. Ou vamos agora esquecer de onde veio e o que se faz nos bailes “funks”? Há, também, um preconceito contra os jovens abastados. Como se só se prestassem às futilidades e diversões, quando, na realidade, a imensa maioria estuda e trabalha.

Assim, com base em lógica elementar, pode-se afirmar que o que o autor não suporta e tenta atingir com sua ironia não é o fato de que a “burguesinha” goste de levar uma vida plena de “futilidades”, vez que esse mesmo desejo é disseminado por todas as classes sociais, mas o fato de que a “burguesinha”, por poder, faz o que as demais desejam. O que maltrata a sensibilidade de nosso poeta é o fato de que há pessoas que alcançam o que desejam e podem levar a vida que querem, seja por mérito pessoal, seja por mérito familiar.

Há algo de ressentido aí, como se o autor, ele próprio, houvesse tido, provavelmente na infância, desejos frustrados profundamente marcantes que não foram elaborados.
Ao longo do desenvolvimento, deparamos com uma infinidade de frustrações e, geralmente, as pessoas superam essas angústias seguindo pela vida ainda mais fortes e preparadas para novos enfrentamentos. Certas pessoas, contudo, ou por terem recebido uma dose realmente insuportável de frustrações, ou por terem sua sensibilidade aumentada, não conseguem superar o estado de carência infantil, seguindo pela vida marcados por um núcleo íntimo de insegurança.

Essa triste realidade subjetiva pode, eventualmente, causar inveja daquelas pessoas que aprenderam a gostar da vida que tem e de serem o que são, apesar do passado difícil.

E aqui podemos entender melhor a motivação do autor. Sabemos ser a inveja um sentimento humilhante para quem o experimenta. A pessoa consciente de sua inveja sente-se mal, inferior, negativa e envergonhada. Quando esse sentimento é muito intenso, pode ocorrer aquilo que Freud denominou de “repressão”: expulsão para o inconsciente de um sentimento insuportável pela consciência. Tivesse o autor procedido somente a repressão, a coisa ficaria somente no âmbito de sua intimidade. Contudo, por outras complicações egóicas, nosso valente guerreiro houve de proceder, em complemento, o mecanismo de defesa do ego chamado por Freud de “racionalização”. Trata-se, a racionalização, de um discurso justificador encobridor do elemento reprimido, no caso, a inveja. Nada melhor que um pretenso senso de “justiça social”, sacanear os ricos – tão bobos e estúpidos – para encobrir a motivação invejosa de base. Esse tipo de discurso tem, ainda, o reforço do elogio da “mídia consciente” levando todo o processo de racionalização a uma satisfação do ego, fazendo com que o autor se sinta realmente alguém especial, quem sabe um moderno justiceiro da poesia, quando, na realidade, sua poesia-sátira foi produto do lado mais obscuro de sua mente ressentida.

Edson Moreira